- Coma - disse-lhe Jon. - Não sabemos quando haverá outra oportunidade. - Es¬colheu dois bolos para si. As frutas secas eram pinhões e, além das passas, havia também pedaços de maçã.
- Os selvagens vêm hoje, Lorde Snow? - perguntou Owen.
- Se vierem, saberá - disse Jon, - Fique à escuta dos berrantes.
- Dois, Dois é para os selvagens. - Owen era alto, de cabelos muito loiros e amigável, um trabalhador incansável, e surpreendentemente hábil quando se tratava de trabalhar a madeira, consertar catapultas e coisas do gênero. Mas, tal como ele alegremente afirma¬va, a mãe deixara-o cair de cabeça quando era bebê, e metade dos seus miolos tinham se derramado pela orelha.
- Lembra-se para onde deve ir? - perguntou-lhe Jon.
- Donal Noye diz que devo ir para as escadas. Devo subir até o terceiro patamar e disparar a besta contra os selvagens se tentarem escalar a barreira. O terceiro patamar, um, dois, três. - Sacudiu a cabeça para cima e para baixo. - Se os selvagens atacarem, o rei vem e nos ajuda, não é verdade? Ele é um grande guerreiro, o Rei Robert. Com certe¬za vem. Meistre Aemon enviou-lhe um pássaro,
Não valia a pena contar-lhe que Robert Baratheon estava morto. Esqueceria disso mais uma vez.
- Meistre Aemon enviou-lhe um pássaro - concordou Jon. Aquilo pareceu deixar Owen feliz.
Meistre Aemon tinha enviado um monte de pássaros... não a um rei, mas a quatro. Selvagens ao portão, dizia a mensagem. O reino está em perigo. Envie toda a ajuda que puder para Castelo Negro. Os corvos voaram até lugares tão distantes como Vilavelha e a Cidadela, e para meia centena de castelos de senhores poderosos. Os senhores do norte constituíam a melhor esperança, por isso Aemon enviou duas aves a cada um deles. As aves negras levaram seu apelo aos Umber e aos Bolton, ao Castelo Cerwyn e à Praça de Torrhen, a Karhold e ao Bosque Profundo, à Ilha dos Ursos, a Castelovelho, à Atalaia da Viúva, a Porto Branco, à Vila Acidentada e aos Regatos, às fortalezas de montanha dos Liddle, dos Burley, dos Norrey, dos Harclay e dos Wull. Selvagens ao portão. O norte em perigo. Venha com todas as suas forças.
Bem, os corvos podiam ter asas, mas lordes e reis não as tinham. Se a ajuda estava a caminho, não chegaria hoje.
A medida que a manhã foi se transformando em tarde, a fumaça de Vila Toupeira foi soprada para longe e o céu ao sul ficou de novo limpo. Não há nuvens, pensou Jon. Isso era bom. A chuva ou a neve poderiam condená-los a todos.
Clydas e Meistre Aemon subiram na gaiola do guincho até a segurança do topo da Muralha, e a maior parte das esposas de Vila Toupeira também. Homens com manto negro patrulhavam incansavelmente os topos das torres e gritavam uns aos outros por cima dos pátios. O Septão Cellador liderou os homens da barricada numa prece, supli¬cando ao Guerreiro que lhes desse forças. Dick Surdo Follard enrolou-se sob seu manto e adormeceu. Cetim percorreu uma centena de léguas aos círculos, ao redor das ameias. A Muralha chorou e o sol atravessou lentamente um céu de um azul intenso. Perto do cair da noite, Owen Idiota voltou com um pão preto e um balde do melhor carneiro de Hobb, cozido num espesso caldo de cerveja e cebolas. Até o Dick acordou para comer. E comeram até a última migalha, usando pedaços de pão para limpar o fundo do balde. Quando terminaram, o sol encontrava-se baixo a oeste, e as sombras estendiam-se, ne¬gras e bem definidas, por todo o castelo.
- Acenda a fogueira - disse Jon ao Cetim - e encha a panela de azeite.
Desceu ele próprio as escadas para trancar a porta e tentar afastar um pouco da ri¬gidez de sua perna. Foi um erro, e Jon compreendeu isso rapidamente, mas agarrou-se à muleta e avançou mesmo assim. A porta da Torre do Rei era de carvalho reforçado com ferro. Poderia atrasar os Thenns, mas não os impediria se quisessem entrar. Jon enfiou a tranca nos seus encaixes, fez uma visita à latrina - podia bem ser a sua última oportuni¬dade - e voltou mancando ao topo, fazendo caretas de dor.
O ocidente tinha tomado a cor de um hematoma, mas o céu por cima de sua cabeça mostrava-se azul-cobalto, aprofimdando-se até o púrpura, e estrelas começavam a surgir. Jon sentou-se entre dois merlões, com apenas um espantalho de companhia, e observou o Garanhão galopar céu acima. Ou seria o Senhor Chifrudo? Perguntou-se onde estaria agora Fantasma. Também se interrogou sobre Ygritte, e disse a si mesmo que esse cami¬nho levava à loucura.
Eles chegaram de noite, claro. Como ladrões, pensou Jon. Como assassinos.
Cetim urinou-se quando os berrantes soaram, mas Jon fingiu não reparar.
- Vá sacudir o Dick pelo ombro - disse ao rapaz de Vilavelha -, senão ele é capaz de passar a luta toda dormindo.
- Estou assustado. - O rosto de Cetim estava pálido como a morte.
- Eles também. - Jon encostou a muleta em um merlão e pegou o arco, vergando o liso e grosso teixo de Dorne para enfiar uma corda nos entalhes. - Não desperdice dardos, a menos que saiba que tem uma boa chance de acertar - disse quando Ce¬tim retornou depois de acordar Dick. - Temos um grande estoque aqui em cima, mas grande não significa inesgotável. E fique atrás de um merlão para recarregar, não tente se esconder atrás de um espantalho. Eles são feitos de palha, uma flecha vai atravessá¬mos. - Não se incomodou em dizer qualquer coisa a Dick Follard. Dick sabia ler os lábios se houvesse luz suficiente e tivesse algum interesse no que lhe estava sendo dito, mas já sabia tudo aquilo.
Os três ocuparam posições em três lados da torre redonda, Jon pendurou uma aljava no cinto e puxou uma flecha. A haste era negra, as penas, cinzentas. Ao encaixá-la na corda, lembrou-se de uma coisa que Theon Greyjoy tinha dito certa vez após uma caça¬da, sorrindo daquele seu jeito habitual: "O javali pode ficar com as suas presas e o urso com as suas garras. Não há nada que seja nem de longe tão mortífero quanto uma pena cinzenta de ganso."
Jon nunca fora nem metade do caçador que Theon era, mas tampouco era estranho ao arco. Havia silhuetas escuras deslizando em volta do arsenal, com as costas tocando a pedra, mas não as via suficientemente bem para desperdiçar uma flecha. Ouviu gri¬tos distantes, e viu os arqueiros na Torre dos Guardas disparando flechas contra o chão. Isso ficava longe demais para interessar a Jon. Mas quando vislumbrou três sombras se separando dos velhos estábulos, a cinqüenta metros de distância, aproximou-se da ameia, ergueu o arco e puxou. Os homens corriam, por isso seguiu-os, esperando, esperando...
A flecha soltou um silvo suave quando abandonou a corda. Um momento depois ouviu-se um gemido, e de repente eram apenas duas as sombras que atravessavam o pátio trotando, Corriam o mais depressa que conseguiam, mas Jon já tinha tirado uma segun¬da flecha da aljava. Daquela vez apressou-se demais e errou. Os selvagens tinham desa¬parecido quando voltou a encaixar mais uma flecha. Procurou outro alvo e encontrou quatro, correndo em volta da casca vazia da Fortaleza do Senhor Comandante. O luar cintilou em seus machados e lanças e nos pavorosos símbolos que traziam nos escudos redondos de couro; crânios e ossos, serpentes, garras de ursos, retorcidas caras demonía¬cas. Povo livre, compreendeu. Os Thenns usavam escudos de couro negro fervido, com relevos e bordas de bronze, mas os deles eram simples e sem adornos. Aqueles eram os escudos mais leves, de vime, dos corsários.
Jon puxou a pena de ganso até a orelha, apontou e soltou a flecha e depois encaixou, puxou e soltou de novo. A primeira flecha perfurou o escudo da garra de urso, a segunda, uma garganta. O selvagem gritou ao cair. Ouviu o profundo trum da besta do Dick Sur¬do à sua esquerda, e, um momento mais tarde, foi a do Cetim que soou.
- Acertei um! - gritou o rapaz em voz rouca. - Acertei no peito de um.
- Acerte outro - gritou Jon.
Agora não tinha de procurar alvos; só precisava escolhê-los. Abateu um arqueiro sel¬vagem no momento em que o homem encaixava uma flecha na corda, e depois enviou uma flecha contra o corsário que atacava a porta da Torre de Hardin com um machado. Daquela vez errou, mas a flecha estremeceu no carvalho e fez o selvagem pensar duas ve¬zes. Foi só quando o homem fugiu que reconheceu o Grande Furúnculo. Meio segundo depois, o velho Mully disparou do telhado das Casernas de Sílex e espetou uma flecha na perna dele, e o homem afastou-se engatinhando, sangrando. Aquilo irá fazer com que deixe de choramingar por causa do furúnculo, pensou Jon.
Quando a aljava se esvaziou, foi buscar outra, e instalou-se numa ameia diferente, lado a lado com Dick Surdo Follard. Jon soltava três flechas para cada dardo que Dick Surdo disparava, mas era essa a vantagem do arco. Havia quem insistisse que a besta pe¬netrava melhor, mas recarregá-la era um processo lento e incômodo. Ouvia os selvagens gritarem uns para os outros, e em algum lugar a oeste ouviu-se o sopro de um berrante de guerra. O mundo era feito de luar e sombras, e o tempo transformou-se num ciclo sem fim de encaixar, puxar e soltar. Uma flecha selvagem rasgou a garganta da sentinela de palha que estava ao seu lado, mas Jon Snow quase nem reparou. Dê-me uma mira limpa sobre o Magnar de Thenn, suplicou aos deuses do pai. Ao menos o Magnar era um adversário que era capaz de odiar. Dê-me Styr.